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O Uso do objeto na arte de elaborar traumas. Por Ana Leão

A partir de los desarrollos teóricos de D. W. Winnicott y de la noción de “trauma acumulativo” tal como la plantea M. Khan-, una vecina-colega brasileña nos comenta cómo sufrimiento y producción artística pudieron articularse creativamente en la obra de Vincent Van Gogh
Ana Paula Leão de Camargo. Curitiba/PR. Brasil. 
Ponencia del XX Encuentro Latinoamericano sobre el pensamiento de Winnicott, 4 y 5 de noviembre 2011 Montevideo.
O presente trabalho pretende explorar aspectos pontuais da vida e da obra de Vincent Van Gogh, fazendo uma leitura de determinadas situações traumáticas (traumas episódicos) e falhas que se desenrolaram por um longo período de tempo (traumas acumulativos) mais significativos da sua infância. Com isso busca compreender de que forma esses traumas puderam ser transformados em criatividade, através do uso do objeto, até enfim se transformar em arte. O olhar sobre as situações traumáticas da vida do pintor, desde o fato de ter sido um filho substituto ao primogênito de seus pais, natimorto, e de portar o mesmo nome deste, do fato de ter sido submetido aos cuidados de uma mãe que viu-se, pouco tempo após seu nascimento, mergulhada em uma depressão tão profunda que lhe foi impossível de prover cuidados adequados ao filho mais velho, até os encontros com as “mães” substitutas que Vincent tentou seduzir durante sua vida. A atração pelo sofrimento e pelo luto das mulheres que cruzaram seu caminho, o passear por extremos tais como a castidade que se impunha pela religiosidade e a seguinte “promiscuidade” que se segue em sua estada em Paris. Esses e outros momentos, esses e outros traumas, que refletem sua obra, desvendam uma tentativa de elaboração de um sofrimento muito primitivo, possivelmente já marcado desde antes de seu nascimento, que se estendeu por toda sua vida, deu nuance a sua loucura e provavelmente causou sua morte.

Não consigo viver sem amor, sem uma mulher.
Não dou um tostão pela vida se não houver nela algo de infinito,
De profundo, de real” Vincent Van Gogh- carta a seu irmão Théo

Vincent Van Gogh foi o filho mais velho de uma prole de seis filhos de Theodorus e Anna. Vem ao mundo carregado de uma história trágica e traumática. Exatamente um ano antes de seu nascimento, sua mãe havia enterrado seu primeiro filho, o primeiro Vincent, natimorto. Três meses depois do sepultamento, Anna já estava grávida de seu segundo filho, também Vincent, o filho substituto, nascido em 30 de março de 1853.
É com esse peso de portar o mesmo nome do irmão morto, que Vincent vem então ao mundo. Ao perceber que aquele bebê não substituía e nunca iria substituir o primogênito, Anna cai em profunda depressão e cria uma barreira entre ela e o pequeno Vincent, um jovem sardento de cabelos vermelhos, que passou grande parte de sua vida a tentar resgatar o amor por esse filho que ele quase foi.
Ele a acompanhava todos os domingos ao túmulo de seu irmão, que ficava no cemitério adjacente ao jardim de sua casa, e tinha que ver seu próprio nome e sua data de nascimento escritos em uma lápide desde muito cedo. Talvez tenha sido um dos motivos de posteriormente ter descrito sua infância como “triste, fria e estéril”. É quase tudo o que se sabe da sua infância. A partir da adolescência, busca em três frentes o resgate de sua identidade: na religião, no amor e na arte.
Sua primeira aspiração profissional era ser pastor, como seu pai. Aos 16 anos foi contratado por um comerciante de arte, após isso, resolveu dedicar-se à religião e, num possível lampejo identificatório, o pai resolve pagar seus estudos de teologia. Desajustado das normas da academia, após duas decepções amorosas avassaladoras Vincent começa a duvidar da religião e abandona a castidade para se envolver com uma prostituta decrépita que já tinha um filho e carregava outro no ventre. Naturalmente, seu espírito de bom samaritano o levou a problemas sérios e ele passou a se envolver com mulheres problemáticas, muitas vezes enlutadas, mas sempre em grande sofrimento, com a impressão de que iria salvá-las. Considerava as prostitutas suas irmãs e quanto mais sofrida fosse a mulher, mais ele se compadecia por ela. Levava para sua casa, cuidava e sustentava, sempre amparado financeiramente por seu irmão Theo. No final dos anos 1870 já percebe que nem amor, nem religião dão conta de seu sofrimento. Ele desenha e pinta muito, curiosamente, pinta sobretudo flores, como fazia sua mãe. Em 1880, pressionado por seu irmão, Vincent começa a se dedicar mais seriamente à arte e aprender o que é necessário para ser pintor. Entretanto, por seus modos e sua aparência não se encaixa nas escolas de arte, desenvolvendo seu estilo no contato com outros artistas. Em 1885 seu pai morre de infarto, e é o mesmo ano em que Vincent pinta “Os comedores de batatas”, que ele julga ser sua melhor obra. Em meados da década de 1880 se instala em Paris e por intermédio de seu irmão Théo, que era comerciante de arte, conhece vários artistas. Dentre eles, dois tiveram papel importante na sua vida: Toulouse-Lautrec e Paul Gauguin. Com aquele conheceu o encanto da fada verde, o absinto, o qual consumiu em grande quantidade e lhe trouxe certamente grande intensidade alucinatória. Com Gauguin, teve um relacionamento muito próximo, ele muda-se para Arles logo depois de Vincent, onde este almejava formar uma comunidade de artistas, desejo este que nunca foi alcançado. Isso porque em Arles, morando com Van Gogh, Gauguin viu de perto uma outra face de Vincent, instável e violento, o que os levava a sérias discussões. Até que um dia Vincent surpreende Gauguin em uma ruela. Tinha uma navalha aberta na mão e ameaçou atacá-lo. O amigo fica apreensivo e se muda para uma pensão. Vincent, arrependido, corta um pedaço do lóbulo de sua orelha e, o envia, enrolado em um pedaço de pano, a uma prostituta amiga de Gauguin. Vincent volta para casa e se deita como se nada tivesse acontecido. Ele é internado por duas semanas. Um mês e meio depois começa a apresentar sintomas de paranóia e, temerosa, a comunidade de Arles pede que ele seja definitivamente internado. Novamente rejeitado, agora por Gauguin e pela comunidade, passa então de um hospital a outro, de uma clínica a outra vivendo como paciente e prisioneiro ao mesmo tempo. Sua produção artística é muito intensa, mas seu estado mental é precário até que em 27 de julho de 1890, aos 37 anos, se dá um tiro no peito no meio de um campo de trigo. Se arrasta de volta para sua pensão e morre só dois dias depois, nos braços de Théo, tendo vendido apenas um quadro em toda sua vida. Suas ultimas palavras são: “La tristesse durera toujours
Discussão
A tristeza de que fala é aquela que viveu em toda sua vida, talvez desde antes de seu nascimento. O sofrimento em que vivia por conta se seus primeiros anos é encontrado na sua produção artística. A escolha das flores em um primeiro momento como tentativa de resgatar o olhar da mãe sobre si pode ter sido uma das primeiras tentativas de uso do objeto.
O interessante do uso do objeto de arte na elaboração de um trauma é que ele tem uma característica de poder ser totalmente destruído sem causar culpa. Pode ser apagado e reestruturado como matéria prima para outras obras. Vincent era tido como indigno de consolar sua mãe, talvez pudesse ser digno de pintar como ela. Aqui o fazer se sobrepõe ao ser. A falta do elemento feminino, dado pela mãe por conta da depressão que os afastava, causava em Vincent uma contínua dificuldade na experiência de ser, a união consigo próprio na ligação psique-soma. Um fato que denota isso é o extirpar do corpo, como fez com sua orelha e como havia feito anteriormente ao colocar a mão na chama de uma vela para provar seu amor por uma moça. Também aparece no fato de ter dificuldade em apreciar os retratos que pintava, sobretudo os auto-retratos. Considerava estes os piores de todos, o que pode falar dessa dissociação que sentia. Se não pode se ver no espelho do olhar de sua mãe, se se viu morto, como poderia então sentir-se vivo ou ter a experiência do ser? Winnicott (1975) diz que se o artista busca seu self na expressão de arte certamente já fracassou com relação ao viver criativo. Vincent não podia viver criativamente, mas fazia uso do objeto de arte para ser visto. Produziu um número inacreditável de obras, talvez na espera de poder ser visto... por alguém. Bollas (1998) escreve que é possível para o indivíduo transformar constelações traumáticas em obra de arte “generando” uma estrutura psíquica, com a “sensação da evolução constitutiva” (p.62). Na busca de identidade, Vincent pinta às vezes quatro ou cinco versões do mesmo quadro, como que tentasse se aproximar cada vez mais de uma imagem mais objetiva de si. Bollas fala disso quando a firma que “a seleção de objetos é frequentemente um tipo de enunciação do self”(BOLLAS, 1998, p. 18). Apesar disso, Van Gogh não foi capaz de encontrar seu self. Na crueza que pinta muitos de seus quadros, no culto ao horror, e no seu apego ao sórdido e ao moribundo, demonstra como foi falha a função da mãe como escudo protetor, como nos fala Masud Khan, criando além dos traumas episódicos, inclusive pré-natais, uma quantidade de traumas acumulativos que o deixaram profunda e irremediavelmente desamparado. Green (1988) fala da mãe morta que ao mesmo tempo em que dá lugar à criação artística e à intelectualização, em uma tentativa de dominar uma situação traumática, o filho “permanecerá vulnerável num ponto particular, o de sua vida amorosa” (A. Green, 1988, p. 260)
Talvez mais importantes do que todas as teorias médicas sobre as doenças de Vincent1sejam as teorias que falam de seu estado emocional. Não ter sido, desde o início, o Vincent perfeito, não ter sido o Vincent desejado deve ser precursor do fracasso que marcou toda sua vida, em uma compulsão à repetição que só finda com a morte, a ascensão ao estado idealizado em que se encontrava o primeiro Vincent. Como ele mesmo previu, só obteve reconhecimento depois da morte, o que se pode considerar uma vitória na batalha que travou durante sua vida.

Palavras-chave: trauma, criatividade, arte.

Referências:

BOLLAS, C. (1992). Sendo um personagem. Rio de Janeiro: Revinter, 1998.
FELL, D. As mulheres de Van Gogh. Campinas: Verus Ed., 2007.
GREEN, A. A mãe morta. Narcisismo de vida, Narcisismo de morte. São Paulo: Escuta, 1988.
OUTEIRAL, J. e MOURA, L. Paixão e criatividade. Um estudo sobre Frida Kahlo, Camille Claudel e Coco Chanel. Rio de Janeiro: Revinter, 2002.
WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
1 Consta que na família de Van Gogh existiram outros casos de transtorno mental: Théo sofreu depressão e ansiedade e faleceu de "demência paralítica" (neurossífilis), no Instituto Médico para Doentes Mentais em Utrecht. Wilhelmina era esquizofrênica e viveu durante 40 anos neste mesmo instituto e Cornelius cometeu suicídio aos 33 anos de idade.

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